terça-feira, junho 16, 2009

Hortência

Ela é casada. (ainda que mulher)
Ela possui duas vidas. Duas vidas completamente diferente que são construídas em momentos diversos, ora em simultaneidade, ora em revezamento. Seu amor é enorme e não pode ser medido por simples atos e ações. Não, a grandeza de seu sentimento ultrapassa a barreira do fático, encontra a sua própria alma. Seu amor é entrega incondicional e completa.

Essa é a sua primeira vida: a entrega.
Entrega, também sinônimo de sacrifício. Seu mundo é constituído de uma pessoa, uma pessoa que não mais enxerga como marido ou amante, mas sim como um humano celestial capaz de lhe prover a felicidade com o mais simples dos gestos. Assim é a sua natureza: simples e feliz. Gosta de ouvir o som de sapatos na madeira, do cheiro da chuva em terra molhada e do piscar selvagem que precede o barulho estrondoso do trovão. Mas seu marido possui a maior concentração desses pequenos momentos jubilosos de felicidade comprimida. Sua fala doce e masculina, somada ao seu porte elegante, desafiador e alvo são os dois melhores aspectos.

Entregara-se e ele sem hesitação, com a certeza teimosa e resoluta. Não apenas entregara a si, mas também a sua vida, tornando-se um satélite sem lados escuros. O sacrifício do que tinha planejado era uma barganha, uma pechincha em oposição à sua torrente de fantasia. Claro, sempre quisera filhos. Gostava do som doce das vozes, da alegria e da vida que os pequenos sabiam transmitir com tanta veracidade (e que se esvai a medida que a visão se torna mais clara), mas seu marido não compartilhava de mesmo anseio. Eis o sacrifício, a entrega. Ela não mais se pertencia, sua alma não estava mais em seus dedos. O que estava em seus dedos era a trincada e desgastada fundação de sua verdade, de sua vida.
Animais. Como os adorava, em especial gatos. De certa forma, os gatos lhe lembravam de seu marido. O porte elegante, a certeza nos atos e a precisão angular e centimetradamente calculada de suas amplitudes. Sua entrega significava renegar igualmente esta disposição, já que ele não os queria.

Essa é a sua segunda vida: o desejo.
Por mais que quisesse se entregar e amá-lo incondicionalmente, sob todas as adversidades que vinham com mais e mais força e brutalidade com o passar dos ponteiros do tempo, não conseguia impedir-se de desejar, de ansiar por tudo aquilo que desejava ter.
Sua segunda vida era obscura e ilícita. Vivia-a nos bastidores, quando ninguém a via. Era uma vida preciosa e feita de areia. Tocava-a com cuidado, manejava-a com carinho e reverência, temendo que escapasse lentamente de sua palma caso respirasse muito forte.

Era uma caixa. uma caixa pequena, inofensiva e feita de ouro. Fotos, imagens, recortes... todos seus desejos escondidos, os filhos que nunca teve e os gatos que sempre sonhou estavam todos ali, olhando para ela e rodeando-a com seus sorrisos e vidas anônimas. Era uma vida incompleta, débil e incrivelmente dolorosa, mas mantinha-a viva. Dava forças para viver sua primeira vida, aquela que ela não se arrependia, mas que lhe fizera diversos buracos em seu ser.

E a arte escondida de ser artista plástica. Seus quadros repletos de cupidos e querubins, sem mencionar as esculturas eretas e felinas que decoravam como pesos de papel, molduras de retratos e abafadores de livros. Silenciosamente, ela se cercou a si e a seu mariodo de sua segunda vida, de forma implícita, solitária e gananciosa. Sua segunda vida queria invadir a primeira, numa entativa desesperada e sufocada de se tornar real, de transgredir a linha da realidade e do sonho.

Amor. Esta é sua palavra-chave. Unilateral, a segunda.
No final, é uma flor tentando sobreviver na garrafa de cerveja que encontrou.
[o ciclo terminou. apenas uma lua resta]