segunda-feira, março 16, 2009

Margarida

Ela é uma garota. (a caminho de mulher)
É baixinha e magrela. Seus cabelos, seus olhos, sua maneira adolescente e organizada de andar não possuem nada de interessante. Ela possui uma existência borrada e diluída. É algo inodor e indolor. Passa pelos lugares como se flutuasse, presença estéril e fantasmagórica.
De longe, não se nota. Não se nota como ela carrega seus livros abraçados e amassados contra os peitos. Como caminha vacilante -- mas organizada -- em seus sapatos. Suas roupas não possuem nada de especial, são meramente pedaços de panos feitos para cobrir seus despudores. Um senso utilitário venenoso e ácido. Caem em seu corpo como forma de seguir sua inexistência existencial.

Não são feitas perguntas a ela. Ninguém se interessa em saber de sua vida, suas angústias e suas cicatrizes da alma. Sim, sua alma também é diferente das demais, ela a sente. Sente como se fosse algo sólido e incomodativo, sente sua alma como uma pedra presa dentro de seu sapato. A cada novo contato com o chão, com o real lhe dói. São seus passos. Caminhar lhe machuca, lhe desgasta, lhe faz cair.
Seus olhos também enxergam a realidade de maneira diferente. É até emsmo engraçado pensar a dicotomia que ela consegue ver através do ar, pairando ali, bem acima da cabeça de todos. A realidade fantasiosa que seu coração tende e teima em pintar, deixando o dia mais cinza ou mais azul do que deveria e a realidade trincada e empueirada que sua mente vislumbra. Via a manifestação da deteriorização ao seu redor... as folhas que caíam das árvores, as trincas que surgiam nas construções, a tinta que descascava, seus pertences que sujavam. Eram todos integrantes da extensa sinfonia do podre, inútil e inexorável.
Mas também havia uma harpa ao fundo, vibrando em sua mente, insistindo e resistindo futilmente a sua mente. Seu embate permanente, que insistia em colocar o todo como cíclico. Seu coração, que não precisava tocar no chão, que era passivo às dores da garota, insistia a mostrar sua puberdade em bater e bater, falando cantado que se as coisas caíam, novas nasciam, que tudo tomava novamente o seu lugar, que seguia indolor adiante. Dessa forma, novas folhas nasciam e a tinta se renovava, mais bela e sólida depois de um tempo. Essa era a natureza.

A cada novo passo, a cada novo pisar, uma imagem vívida explodia em sua mente, berrante e imperativa. A imagem que justificava seu abraço apertado em seus livros de graduação. Era a imagem dele, queimando em sua visão, embaçando-na. Ele estava lá, sempre presente, a relembra-la de seu motivo, de sua razão, do objetivo pelo qual ela escolheu se martirizar. Eram três livros que apertava contra si, e três livros grossos. Sólidos e pesados. A faziam encurvar por conta do tamanho do fardo que representavam.
Economia. Pois é. Economia não combinava nada com ela. Contas, possibilidades, margens e gráficos. Sofria e sofria para conseguir adicionar entendimento à matéria. Mas não desistia, muito embora sua vontade fosse aquela. O curso era longo e trilhado através do milho sacro, mas ela teimava em dar mais um passo com seus joelhos. Carregaria os livros, enfrentaria as aulas, duelaria com as provas. Isso tudo porque sabia que, quando entrasse pela porta de seu apartamente ele estaria ali, sobre sua cômoda, olhando-o através daquele visor binário.

Uma sonhadora realista. Uma eterna espera, paciente. Vítima vitimada vitimante. Alguém que vive cada dia engolindo sua dor. A dor jogada a ela injustamente. Vigiada pela ausência.

Mas, acima de tudo, uma flor, que não teve outro local para crescer, senão numa garrafa de cerveja.

[quem diria? há vida depois de elementals! quatro vidas...]

Um comentário:

Diogo disse...

Interessante... não entendi bem o sentido do post, mas gostei. Soa bem real, uma crônica bem escrita. Pelo jeito, você tem lido bastante Clarice Lispector e afins, não? O estilo parece um bocado com o desse blog que você indica...