domingo, abril 26, 2009

Rosa

Ela é uma senhora. (mas mulher)
Sua existência é escura, sombria e inodora. Sua casa é seu casulo. Um casulo completamente oco e sem vida, como um ivólucro de solidão e dor. Sua companhia se dá através dos estalos do calor e estampidos de frio na madeira pesada. Os sons que produzem advem do surdo teclado iluminado por suas contas de acessora e seus velhos grafites rabiscando as inúmeras tabelas de seu emprego.

Seus olhos são velhos e cansados. Enxergam o mundo como se fossem quadrados. O mundo, ah!, este constituído de pequenos quadrados, uns vazios, outros preenchidos, tal qual as células das suas tabelas que constituem sua vida. Sabia que, se tivesse vontade, poderia esticar suas mãos e, com um golpe de seu lápis, preencheria as células restantes com suas fórmulas e tudo faria sentido. Mas... qual seria a graça do mundo se este estivesse completo e sem falhas?
Mas do que seus olhos gostam mesmo são dos carros. Eles correm e vão a lugares. O perigo e o prazer da velocidade enchem sua mente de temor reverencial. Se não fosse pela enfermidade de sua alma e o aleijamento de sua mente, teria viajado bastante. Seus olhos poderiam ter tocado outros cenários, outras células.
Talvez, até mesmo menos cansados.

Embora seus olhos fossem cansados e tivessem fadiga de piscar, o mesmo não acontecia com suas pernas.
Andar. Andar no sentido intransitivo, claro. A banalidade é seu refúgio. Percorrer alas do supermercado da esquina, atravessar catracas de ônibus, passear pelo parque ridículo do bairro, ir até o banco para entregar todos seus formulários e longas tabelas. Gostava de andar. Era fácil e seguro. Ainda que seus dedos estivessem mechucados de tantas quinas e pontas que encontraram na vida, eles não desistiam, tal qual a estupidez dos metrônomos, que não cansam de bater ao mesmo ritmo eternamente.

Seu emprego é o único motivo pelo qual mantem-se viva. Se não fosse pelo tédio e trabalho que exerce, sua vida seria completa, una e simples. Não teria preocupações, conseguiria desenvolver uma rotina que a transportaria à segurança do cotidiano e teria liberdade para gozar da arte de caminhar que tanto apreciava. Tinha pleno conhecimento que, no momento no qual não precisasse mais entregar seus formulários, preencher suas tabelas e angariar todas as suas fórmulas, sua vida lhe pertenceria. Seria dona do que quisesse. Estava ali, esperando que suas mãos finas e rosadas tomassem para si.
E então a verdade sairia do insconsciente para habitar seu consciente: não tinha motivos para continuar a viver. Seus olhos finalmente veriam a verdade, retirando-a do ventre da mentira, onde estivera tão confortavelmente adormecida durante todos os quarenta e três anos de sua gravidez.

Saberia, finalmente, a violência que carregava em seu interior. As responsabilidades tão frágeis que tinha despedaçado com sua indiferença. A vida que tinha se negado a permitir existir. A guilhotina afiada e invisível com a qual tinha decepado tantos e tantos sonhos. Seus e de outros.
Via-se sim, como uma rosa. Mas uma rosa diferente. Uma rosa sem cor, sem cheiro, sem graça e sem vida, mas repleta de espinhos. Espinhos lívidos, fortes e letais.
Não.
Preferiria a mentira.

Ela, assim como tantas outras, sofreu com a realidade. Embora flor, não encontrou onde crescer, senão no azedume de uma garrafa de cerveja.
[com o ciclo dos elementais no fim, outro há de começar]

2 comentários:

Diogo disse...

Hum... de novo, fico sem entender. Então, vou colocar aqui quaisquer pensamentos nada a ver que passam pela minha cabeça depois de ler. Estúpido, claro, mas não enxergo outra forma de comentar estes posts, já que são mais subjetivos do que o normal.

Bem, bem, outra descrição de uma pessoa de sexo feminino. Duas pessoas que não são felizes no sentido simplista e clichê da coisa. Ambas, como muitos, fogem da realidade ou evitam encará-la o tempo todo. Um ponto comum entre as duas é o deslocamento, o caminhar, que vem junto de uma idéia de dor. Outro é a solidão, parece que as duas estão deslocadas da sociedade, como se fossem especiais mas não respeitadas por isso.

O estilo lembra um pouco o do blog que você favoritou, o red shoes diaries. Cheio de pontos, parece dar uma noção de pausa entre as frases. Também me parece um pouco como se fosse poema passado para prosa, como se cada frase fosse um verso, delineadas por pontos. Mas você escreve sobre pessoas, algo menos abstrato do que a tal garota.
As frases também são mais sucintas, dão a impressão de que existem lacunas no texto, quase como se convidasse ou incintasse quem lesse a imaginar a situação, a buscar um sentido menos óbvio no que foi escrito, a se identificar e se tornar mais íntimo daquilo que está sendo dito. Por outro lado, isso torna meio difícil saber exatamente que mensagem, que idéia se está tentando passar.

Jean disse...

Bem, eu perguntei pro Nícola se ele me disse que esses posts não fogem a proposta do blog e que serão esclarecidos no ultimo post, que se não me engano seria o terceiro ou o quarto.